por
T. Austin-Sparks
Capítulo 7 - O Prenúncio de um Novo Dia
O capítulo seis conclui a primeira seção do Evangelho de João, que está ligada à palavra “Vida”. Foi muito enfatizado e está claro que essa Vida está inseparavelmente relacionada à Cristo. Essa declaração, que estava relacionada à morte de Cristo, causou muita ofensa e muitos foram embora. É sempre assim! Jesus, o Mestre, o Obreiro ou o Homem Bom poderia ser aceito facilmente, mas muitos O rejeitaram quando ouviram que Sua morte seria o caminho exclusivo para a vida e que a única base para união com Ele e comunhão com Deus seria por meio do alimentar dEle como o Pão partido. Desde os dias dos pais apostólicos até os dias de hoje, existem fortes divergências de opinião a respeito da palavra “páscoa” no versículo quatro do capítulo seis - se ela deveria estar ali, se está no texto original. Seja qual for o argumento contrário, concordamos que todo o ensino espiritual do Evangelho de João justifica o fato dessa palavra estar ali. A expressão “se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos” [Jo 6:53] nos conduz de volta à Páscoa. Como vimos, a Páscoa era a vida de Israel depois da passagem da morte, e isso está totalmente ajustado com João seis, onde a vida deveria encabeçar [ou dirigir] a Páscoa, ou a Cruz de Cristo. O capítulo seis marca uma transição da vida para a luz, mas também combina as duas. Veremos a mesma declaração, ênfase e conclusão em relação à luz, como ocorreu no caso da vida, seguindo o mesmo resultado; ofensa e rejeição da parte dos incrédulos. A luz esquadrinhará, como sempre faz. Vimos que o capítulo um compreende, pelas suas palavras, todo o Evangelho. Assim sendo, essa segunda sessão é prefigurada ali pelas seguintes palavras: “A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas...” [J0 1:4-5]. “Este veio... para que testificasse a respeito da luz... a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem” [Jo 1:7,9].
Então, a distinção entre aqueles que veem e aqueles que não veem é marcada por Natanael (Jo 1:45): “... vereis...” (versículo 51). Em contradição àqueles que estavam em trevas, ainda que na presença da luz, havia um que, sendo verdadeiramente um deles, ainda assim era diferente. Ele era um verdadeiro Israelita, em quem não havia dolo; um Israelita, em quem não havia Jacó. O egoísta, autossuficiente e oportunista Jacó foi subjugado pelo Israel sedento de Deus. Essa diferença determinará quem virá para a luz e quem será duplamente escurecido.
Cristo Cumpre a Festa dos Tabernáculos
Retornando ao capítulo sete, descobrimos que outra festa está em vista, e é na ocasião dessa festa que acontece o que está registrado nesse capítulo. É interessante notar que, em João, a narrativa move-se repentinamente da Páscoa para a Festa dos Tabernáculos. Em Êxodo e Levítico, a ordem é a Páscoa, no 14º dia do primeiro mês; então, a Festa dos Pães Asmos, Primícias, Festa das Semanas, Festa das Trombetas, Dia da Expiação e, por último, a Festa dos Tabernáculos. Portanto, a Festa da Páscoa é no 14º dia do primeiro mês e a Festa dos Tabernáculos no 15º dia do sétimo mês. O período compreendido entre essas duas festas não está registrado em João, pois somos levados, de uma vez, da Páscoa para os Tabernáculos. Isso é muito significativo e está de acordo com o que falamos anteriormente sobre a história espiritual (veja capítulo 4). Permita-nos destacar que a Festa dos Tabernáculos é a última das Festas Mosaicas (a Festa do Purim veio muito mais tarde na história de Israel). Portanto, a Festa dos Tabernáculos leva nossos olhos de volta para o início, e comemora a separação e o desapego do mundo (Egito), falando de uma vida de fé. A segurança(?) do Egito foi abandonada e abraçadas as tendas do deserto. As casas de pedra foram trocadas por tendas, mas essa nova ordem não é tão frágil como pode parecer, pois haverá o infalível governo da coluna de nuvem e de fogo. Houve também a “...pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo” (I Co 10:4). Essa é a separação da luz e da vida natural, que é mostrada como escuridão e morte, para vida e luz em união com Cristo. Quando a Festa dos Tabernáculos era celebrada no templo, um grande candelabro era aceso e um grande vaso de água do Poço de Betesda era derramado no Templo. Esses, como bem sabemos, são símbolos de luz e vida para aqueles que creem. Cristo se apropria desse costume e se coloca no lugar de ambos, unindo em Si mesmo o simbolismo duplo da luz e da vida.
O fator de transição no capítulo sete é o seguinte: o que está definitivamente em vista é conhecer o Pai e o Filho e, através deste e dos próximos capítulos, será percebido como a questão da ignorância a respeito dos dois é fortemente enfatizada e reiterada. Toda a questão da luz espiritual, conhecimento, entendimento, verdade, se volta para esta ênfase final da vida (7:37-39), e isso devido à habitação interior do Espírito Santo. Antes que possa haver um conhecimento do Senhor, que significa comunhão, deve existir a vida. Vida conduz à luz. Este é um teste crucial, e mostra quão crucial realmente é o capítulo sete. Rejeite a vida que vem pelo caminho da Páscoa, a morte de Cristo, e seja qual for a tradição, a luz histórica, até mesmo a apreensão intelectual de Deus, e o verdadeiro conhecimento e comunhão espirituais com Ele serão impossíveis.
Cristo em Glória e O Novo Dia
Um outro grande marco do capítulo sete é o que pressupõe Cristo em glória, representando o novo dia. O novo dia é tipificado pelo oitavo dia, que, de acordo com Levítico 23:36, é o último grande dia da Festa de João 7:37. Esse oitavo dia, como sabemos, conclui a história de Israel na Lei e traz à cena a igreja na graça. Esse foi o dia que toda a obra de Deus foi aperfeiçoada em Cristo, Ele se assentou à destra de Deus em glória, e o Espírito foi derramado, exatamente como as águas de Betesda foram derramadas no Templo. O oitavo dia se tornou no primeiro dia para a Igreja e, com isso, todas as coisas começam novamente no terreno da ressurreição. O novo dia é o dia do Espírito como vida e luz.
Olhando novamente para o sétimo capítulo de João, vemos o surgimento de um antagonismo a Cristo severamente crescente. O que estava latente, agora está se tornando manifesto, e a hostilidade a Ele é quase que universal. Até mesmo os membros de Sua família dizem não acreditar nEle. Existe suspeita, preconceito e até mesmo perigo de vida. Quando percebemos isso, não temos como não ficar impressionados com Sua calma e dignidade inabaláveis; a ascendência moral forte e estável na qual Cristo continua seguindo. Sua confiança não é apenas momentânea. Ele segue como Alguém Que está perfeitamente seguro de que nada pode atingi-Lo ou assalta-Lo até que Sua obra esteja completa. Qual é o segredo dessa elevação moral e espiritual? Para responder a isso, temos que desvendar a lei que governa o novo dia do Espírito, e tudo o que esse dia traz para o crente.
A Lei da Vida Escondida em Deus
Essa lei, como representada no Senhor Jesus, é a lei de uma vida escondida em Deus. Ele Se recusava a ser tirado daquela comunhão secreta. Perceba que até mesmo seus irmãos argumentaram com Ele. Perceba como eles procuraram impor sobre Ele a ordem religiosa, ordenanças e práticas do povo religioso. Note como Ele foi advertido para ser político nessas questões; e então veja como Ele deixa todas essas coisas de lado, recusando-Se a ser dominado por elas. Existe algo para Ele que toma a preeminência sobre todos os sistemas religiosos e todas formas aceitas; algo que é mais do que política e diplomacia. O testemunho do Pai em Seu coração. Se passarmos por esse Evangelho, registrando todas as ocorrências da palavra “Pai”, ficaremos espantados com o resultado. Isso nos dá um pano de fundo da vida do Senhor Jesus. Foi na sua devoção de Filho ao Seu Pai, e nessa comunhão secreta tudo era determinado para Ele. Tudo era decidido pelo clamor, grito, coação, argumentos, dos homens - inclusive os religiosos - e por seus métodos, tempos, meios e regras comumente aceitas. Mas para o Senhor a questão não era o que os outros estavam fazendo, o que aquilo envolvia, ou até mesmo que vantagem poderia haver em fazer alguma coisa. Para Ele tudo se resumia assim: Essa é a vontade do Meu Pai? Se for, como Ele deseja que isso seja feito? E, quando Ele deseja que seja feito? Portanto, parece haver uma contradição no começo desse capítulo, quando Ele disse que não subiria à Festa, e então, depois que os outros vão, então Ele vai. A explicação é que, para Ele, a questão de ir ou não ir não era algo governado por fatores externos, mas Ele esperava até receber o comando interior do testemunho do Pai.
Quantos do povo do Senhor chegaram ao fracasso, derrota e até mesmo ao desastre por se tornarem parte de uma ordem reconhecida, se rendendo ao governo de um sistema organizado, sacrificando com isso o andar interior com Deus. Assim, sua ascendência, poder espiritual e efetividade se tornaram severamente limitados, incapacitando-os de ajudar outros como deveriam, porque não aprenderam a conhecer o Senhor através da comunhão e do andar secreto e interior com Ele. Isso pode gerar dificuldades para muitos, mas toda essa dificuldade seria resolvida se a obra do Senhor fosse constituída de tal maneira que, até mesmo nas questões que envolvem governo, todas as coisas fossem feitas por intermédio da oração e, na medida do possível, em comunhão.
Certamente que isso é característico do novo dia, o dia do Espírito Santo, o dia da vida e luz, em união individual e coletiva com Cristo.