por T. Austin-Sparks
Capítulo 1 - O que é o Evangelho?
Pedimos ao Senhor que nos ajude a considerar alguns dos temas mais vitais de nossa vida cristã. Em nosso Novo Testamento, possuímos um certo número de documentos escritos. Dentre estes, há um que está relacionado com uma questão que talvez seja a mais vital que jamais surgiu em relação ao cristianismo. Em termos de tamanho, não se trata de um documento muito longo. Na verdade, é um dos menores. Contudo, num pequeno espaço, o autor concentrou a própria essência do cristianismo. Ele tomou sua pena para escrever este documento com uma intensa determinação de resolver esta grande questão. Por causa disso, ele concentrou num espaço limitado a própria essência do cristianismo. Penso que o apóstolo nunca escreveu nada sob um sentido de tão grande importância e necessidade. Esta carta vibra com a percepção de sua paixão sobre este assunto particular.
Uma grande questão havia surgido. Esta questão ameaçava destruir a verdadeira natureza do cristianismo. A questão era a seguinte: o que foi isso que invadiu o mundo na vinda de Jesus Cristo? Na vinda de Jesus Cristo a este mundo, Deus invadiu a história. Deus interveio na história para operar uma mudança tremenda em todas as coisas. Portanto, a grande questão era: o que foi isso que veio a este mundo com Jesus Cristo? Será que é apenas a continuação de um antigo sistema com algumas coisas a ele adicionadas? Será um sistema legal configurado à semelhança do judaísmo? Em outras palavras, será apenas a continuação do judaísmo com algo que lhe foi adicionado? Ou será que é algo inteiramente novo e vivo, uma ação espiritual vinda do céu? Será que a velha vestidura do judaísmo precisa apenas receber alguns remendos de pano novo? Ou será que a vestidura deve ser inteiramente nova? Será que os velhos odres do judaísmo devem ser enchidos com vinho novo? Ou será que deve haver um odre totalmente novo? Esta é a grande questão. A importância desta questão implicava numa enorme diferença. Tal diferença tornou-se um grande campo de batalha entre o velho e o novo.
Esta questão envolveu o cristianismo em grande confusão. Por algum tempo, quase todos os cristãos estavam num estado de incerteza sobre este assunto. Tal fato gerou divisões muito sérias dentre o povo do Senhor. Essa incerteza chegou a insinuar-se até mesmo entre os primeiros apóstolos. Pedro, o líder dos 12, experimentou um grande conflito a respeito disso. Numa ocasião, ele teve um confronto muito sério com o apóstolo Paulo sobre este tema. Tiago, que era um dos irmãos terrenos do Senhor, tinha grandes reservas sobre este assunto. Estêvão, o primeiro mártir cristão, morreu justamente por causa desta questão. Onde quer que o cristianismo chegasse, esta disputa vinha logo em seguida.
Nos dias em que vivemos, talvez seja difícil perceber a tremenda tensão que havia naquela época em relação à verdadeira natureza do cristianismo. Embora este documento particular ao qual nos referimos acima tenha realmente resolvido o assunto de forma ampla em sua época, a natureza desta controvérsia tem persistido até nossos próprios dias. Será que o cristianismo é um sistema legal ou é uma vida espiritual? Foi por causa desta questão que o Senhor ressurreto e assentado à destra do Pai abriu caminho através do céu e colocou Sua mão sobre o homem chamado Saulo de Tarso. Não era pouca coisa para o Senhor Jesus, que havia se assentado à destra da Majestade nos céus, levantar-se de Seu trono e vir a esta terra novamente. O Senhor deve ter percebido que havia um assunto muito sério envolvido nisso. Portanto, Ele não designou um anjo ou um arcanjo. Ele deixou Seu lugar na glória e desceu para encontrar aquele homem na estrada de Damasco. Ali o Senhor colocou sua mão sobre Saulo.
Paulo mais tarde descreveu o que lhe aconteceu, dizendo ter sido “conquistado” por Cristo Jesus [Fp 3:12]. Você sabe qual é o significado da palavra “conquistado”? Espero que você saiba o significado dessa palavra, ao menos no que se refere à lei. Um policial está procurando um determinado criminoso. Ao encontrá-lo, ele coloca firmemente suas mãos sobre o criminoso, prendendo-o. Foi essa palavra que o apóstolo utilizou. Ele disse: “Eu fui conquistado, eu fui aprisionado por Jesus Cristo”. Tudo isso aconteceu com relação à questão específica que estamos considerando. O Senhor aprisionou Paulo como o instrumento por meio do qual Ele iria responder a esta questão. Isso mostra quão seriamente o Senhor considerava este assunto.
É impossível entender o ministério do apóstolo Paulo a menos que reconheçamos esta conexão particular. Todo o ministério do apóstolo Paulo está relacionado com um assunto: a natureza espiritual, celestial, do cristianismo. O próprio Paulo, por meio daquela poderosa intervenção celestial, conseguiu perceber a grande diferença. Ele entendeu que uma grande separação havia sido criada entre o velho judaísmo e o novo cristianismo, entre o antigo Israel terreno e o novo Israel celestial. Paulo percebeu que elas eram duas nações diferentes, distintas. Ele compreendeu que esta questão separava as eras. Aquilo que havia existido nas eras passadas estava agora terminado. Algo novo havia sido introduzido, para ser a natureza das coisas por todas as eras eternas. Quando o apóstolo Paulo percebeu a vasta diferença entre o legal e o espiritual, quando isso foi aberto sobre ele desde o céu, ele lançou-se nesta batalha disposto a dar até sua última gota de sangue.
A batalha começou logo que Paulo foi salvo. Após o Senhor tê-lo encontrado, ele entrou na cidade de Damasco. Tendo sido batizado e recebendo o Espírito Santo, ele passou a dar-lhes testemunho de que Jesus é o Cristo. Seus ouvintes entenderam o que isso significava em relação à pessoa de Paulo: ele havia mudado de terreno. Paulo havia deixado para trás o terreno do legalismo, do judaísmo, e assumido o terreno de Cristo. Neste momento, a batalha começou e Paulo teve que fugir da cidade. Ao longo dos trinta anos de sua vida com o Senhor, Paulo se encontrou nessa batalha em todos os lugares onde esteve.
O último capítulo do livro de Atos, que nos mostra Paulo na prisão aguardando uma possível sentença de morte, revela que a batalha continuava, pois os judaizantes estavam com ele em suas cadeias. Paulo procura argumentar com eles, mas o resultado sempre é o mesmo: “Não há mais proveito nisso; agora devo voltar-me para os gentios”. Esta batalha perdurou desde o início até o fim de sua vida. Tratava-se de uma batalha relacionada a um assunto crucial: o cristianismo é um sistema legal sobre a terra ou é uma ação espiritual do céu?
Desejo iniciar afirmando que existe um documento no Novo Testamento que estabelece a resposta para esta questão. Minha suspeita é que, a esta altura, muitos já tenham descoberto que documento é este. Se você ainda tem dúvidas, trata-se da epístola aos Gálatas.
Muitos hoje creem que esta epístola foi a primeira que Paulo escreveu. Quando eu era jovem, predominava o pensamento que as epístolas aos Tessalonicenses haviam sido as primeiras que Paulo havia escrito, e eu assim afirmei muitas vezes. Estudos posteriores levaram aqueles que são profundos conhecedores da Palavra a concluir que a epístola aos Gálatas foi provavelmente a primeira escrita por Paulo. Contudo, não pretendo discutir este tema nesta oportunidade. Você pode aceitar essa conclusão ou então deixá-la de lado. Entretanto, se isso for verdade, o fato de que este tenha sido o primeiro grande tema sobre o qual o apóstolo escreveu adquire grande significado. Se você ler esta carta e sentir a energia com a qual Paulo a redigiu, poderá discernir quão seriamente ele considerava esta questão. Ele percebeu que nela havia algo que estava ameaçando toda a natureza do cristianismo. Desde então, ele se dedicou a realizar esta obra, que consiste em preservar a natureza puramente espiritual daquilo que havia vindo com Jesus Cristo.
Seguiremos adiante para considerar o conteúdo desta carta, procurando entrar nela com progressiva profundidade. Contudo, antes de fazermos isso, existem duas coisas que necessitam receber nossa atenção.
Primeiramente, precisamos considerar o que o próprio apóstolo quis dizer com esta carta. A resposta disso está no versículo 8 do primeiro capítulo: Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema. Toda a epístola é reunida em uma única expressão: “O evangelho que temos pregado”. Paulo diz que o tema do qual está tratando é a natureza do evangelho. Ele afirma: “O evangelho...que vos temos pregado”. Portanto, esta carta é uma reafirmação do evangelho.
Vários nomes têm sido dados para aquilo que está contido no Novo Testamento. Muitos chamam isso de “cristianismo”, que é um termo bastante abrangente. Outros o chamam de “fé cristã” ou “religião cristã”. Nenhum destes termos é usado no Novo Testamento. Jamais o conteúdo do Novo Testamento é por ele definido como “cristianismo”, “fé cristã” ou “religião cristã”. Apenas um nome é utilizado para esta definição. Tudo aquilo que está contido no Novo Testamento e que veio com Jesus Cristo é simplesmente chamado de “evangelho”.
Neste ponto surge algo que devemos considerar com atenção. Temos o costume de fazer uma distinção entre aquilo que chamamos de “o evangelho” e o ensino mais amplo para os crentes. Para muitos, “o evangelho” é aquilo que se dirige aos que ainda não foram salvos. Quanto ao que fornecemos aos que já são salvos, trata-se de uma outra coisa. Portanto, você deverá promover algumas reuniões para a pregação do evangelho no fim de semana. Estas reuniões não são para os crentes, mas para os que não foram salvos. Trata-se de uma distinção totalmente artificial. Tudo que está no Novo Testamento, seja para os salvos e para os não-salvos, é chamado de “evangelho”. Não se trata de uma religião. Não se trata de uma filosofia de vida. Não é um sistema de verdades e práticas. Trata-se apenas do evangelho. Esta palavra significa “boas novas”. Várias conexões são dadas a esta palavra, tal como “o evangelho da vossa salvação”. Entretanto, existe algo abrangente e inclusivo sobre esta palavra, que consiste no “evangelho de Deus com respeito a Seu Filho Jesus Cristo”.
Será que você percebe o que fazemos quando separamos o evangelho para os incrédulos e aquela outra instrução para os crentes? Nós abandonamos o terreno cujo fundamento é o Filho de Deus e entramos em um outro território destinado aos cristãos.
O evangelho abrange tudo aquilo que está em Cristo. Você nunca alcançará o lugar onde cessará de descobrir algo novo relacionado ao Filho de Deus. Contudo, ainda que possamos continuar descobrindo mais de Cristo por toda a eternidade, tudo ainda será o evangelho.
Você pensa que o evangelho termina quando você nasce de novo? Você pensa que o evangelho termina quando você deixa este mundo e vai para o Senhor? Se você observar a grande multidão que homem algum pode enumerar ao redor do trono de Deus, e ouvir aquilo que eles cantam, perceberá que é um hino sobre o evangelho, que proclama: “Digno é o Cordeiro”. Todos estes que cantam chegaram a uma compreensão absolutamente plena do Filho de Deus. Portanto, note bem: o evangelho é a boa nova de Deus com respeito a Seu Filho por todos os tempos e por toda a eternidade. O evangelho é algo infinitamente maior que a salvação do pecado e o livramento do juízo e da morte.
O evangelho abrange tudo que está em Cristo. Foi por este evangelho que o apóstolo estava lutando. Não era apenas pela salvação destas pessoas, mas para que eles pudessem entender tudo que estava compreendido na salvação em que haviam entrado. Este é o campo de batalha de Paulo. Ele diz:
O que isso significa? Uma epístola inteira é concentrada numa única expressão. O evangelho é a emancipação de toda escravidão legal. Ele consiste na emancipação para a liberdade dos filhos de Deus. Este é o tema da epístola: emancipação de toda escravidão legal para a entrada na liberdade dos filhos de Deus. Paulo então diz: “Este é o evangelho que vos temos pregado”.
Creio que alguns de vocês leram a história da guerra civil americana. Vocês sabem que toda a nação se dividiu em duas partes por causa de um único assunto. Milhões de vidas foram sacrificadas por causa dessa única questão. Tratava-se da emancipação dos negros que estavam em escravidão. Essa questão foi decidida em batalhas, com um custo muito alto. Finalmente, o lado que defendia a libertação dos escravos venceu e com isso, foi proclamada a liberdade para todos eles. Aqueles escravos que haviam passado suas vidas em terrível escravidão mal sabiam o que fazer com a liberdade que haviam recebido. Era algo tão maravilhoso que eles mal podiam acreditar. Eles se perguntavam se era realmente verdade que haviam sido libertos. Agora eles não mais precisavam temer os feitores, nem seus chicotes, pois eram livres. A coisa mais maravilhosa em suas vidas foi aquele grande dia quando a proclamação foi feita: “os escravos são livres”. Maldito seria aquele que tentasse trazê-los de novo à escravidão!
Quando você se aproxima dos Estados Unidos pelo oceano, entrando pelo rio que conduz à grande cidade de Nova Iorque, passará pela famosa estátua da Liberdade. É um monumento muito alto, onde a figura da liberdade como que estende sua mão sobre toda a nação norte-americana. Esta é a magna carta, o decreto de isenção que o apóstolo Paulo escreveu na epístola aos Gálatas.
Durante as grandes guerras napoleônicas, quando o exército francês invadiu a Rússia, parecia que Napoleão iria devastar aquele país. Por longos e longos meses o confronto assolou a Rússia. A questão era muito séria. Porventura aquele país seria esmagado sob o calcanhar de Napoleão? Poderia a Rússia ser salva? Houve um dia em que um general se dirigiu ao comandante-em-chefe das forças russas. Aquele comandante era agora um homem envelhecido que sofrera grande desgaste na longa guerra. Naquele dia, o general chegou e disse-lhe: “Napoleão está batendo em retirada. O exército francês deu meia-volta e está deixando nosso país.” O velho comandante ficou em silêncio. Em seguida, ele reclinou sua cabeça e, enquanto lágrimas corriam por sua face, disse: “Graças a Deus, a Rússia está salva. A batalha está terminada”.
Tanto a guerra civil americana como a campanha russa são coisas pequenas se comparadas com a questão que estamos discutindo. O grande tema da liberdade do povo de Deus é algo muito maior do que qualquer escravidão terrena.
Nesta epístola, Paulo chama o legalismo de jugo de escravidão. Ele clama: Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão. [Gl 5:1b]. Quando ele usou a palavra “jugo”, estava empregando a mesma palavra que o próprio Jesus havia utilizado. Jesus olhou para a multidão e disse: Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados… Tomai sobre vós o Meu jugo e aprendei de Mim… Porque o Meu jugo é suave, e o Meu fardo é leve [Mt 11:29,30]. Jesus estava falando às multidões que estavam debaixo do jugo do legalismo judeu. Ele disse que estar debaixo daquele jugo era estar cansado e sobrecarregado. Ele disse, “Meu jugo é suave”. Por meio disso, Ele estava dizendo o seguinte: “Eu vou libertá-los do jugo da escravidão judaica. Eu vou libertá-los de toda esta canseira sob o legalismo”.
Os escribas e fariseus tinham milhares de interpretações para as Escrituras do Antigo Testamento. Eles tomaram a lei de Moisés e colocaram 2.000 interpretações em cima de cada lei. Cada coisa que Deus disse eles interpretaram criando milhares de coisas diferentes. O resultado disso foi que eles tomaram a Palavra de Deus e produziram uma interpretação que tornou-se um fardo a ser carregado. Deus havia dito: “Não farás tal coisa”. Então os escribas e fariseus disseram: “Deus quis dizer que não farás tal coisa, mas que também não farás aquela outra coisa e ainda milhares de outras coisas”. Moisés havia dito que eles deveriam fazer uma determinada coisa. Contudo, os escribas e fariseus diziam que isso implicava em fazer milhares de coisas. Jesus disse que eles juntavam pesados fardos e os colocavam sobre os ombros dos homens. Este sempre é o resultado do legalismo. Quando você está debaixo de um sistema legal, você não sabe o que pode fazer. Você fica sempre perguntando: “Será que eu posso fazer isso? Se eu fizer isso, será que algum juízo não cairá sobre mim? E se eu não fizer isso numa determinada forma, será que cairei no juízo de Deus?”
Essa era a situação naquela época. O próprio Paulo tinha estado debaixo daquele fardo. Ele nos fala sobre isso no capítulo sete da epístola aos Romanos. Paulo termina aquela terrível história com uma afirmação: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” Todo aquele sistema é um sistema de morte. Contudo, ele acrescenta: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. Agora, nEle eu enfrento todas as coisas.”
Esta é a batalha desta carta aos Gálatas. Isso é o que Paulo chama de “evangelho”. E como não tenho tempo para abordar o segundo assunto esta manhã, então vou somente mencionar. O segundo assunto fundamental que está por trás desta carta, se Deus permitir, falarei amanhã. Mas aquele que corre, leia; e aquele que lê, corra. Corra para fora de qualquer coisa dessa natureza e para dentro da liberdade na qual Cristo nos libertou.
Até este ponto apenas introduzimos a grande questão. Tal questão se refere à verdadeira natureza do cristianismo, ou seja, daquilo que veio ao mundo com Jesus Cristo. O que apresentamos até agora não deve ser tomado como o todo, pois é apenas o início. Ainda precisamos ver em que consiste termos sido colocados em Cristo. De forma geral, realmente estamos na liberdade. Contudo, precisamos entender o significado disso. Isso quer dizer que vocês não devem ficar satisfeitos com o que foi dito até agora.
Guardem tudo em seus corações e pensem que ainda há algo mais que precisamos aprender sobre este assunto. Trata-se de um glorioso evangelho, o evangelho de nossa liberdade em Cristo. Portanto, nós recusamos ser levados de volta à escravidão por qualquer homem.
Em consonância com o desejo de T. Austin-Sparks de que aquilo que foi recebido de graça seja dado de graça, seus escritos não possuem copirraite. Portanto, você está livre para usá-los como desejar. Contudo, nós solicitamos que, se você desejar compartilhar escritos deste site com outros, por favor ofereça-os livremente - livres de mudanças, livres de custos e livres de direitos autorais.