O Cristo, o Anticristo e a Igreja

por T. Austin-Sparks

Capítulo 2 – Um Vaso pelos Direitos de Deus

Eu vou me alongar um pouco mais sobre uma ou duas coisas que foram apenas mencionadas na meditação passada sobre o assunto “O Cristo, O Anticristo, e A igreja”. Nós mencionamos que existiam três coisas que eram características comuns aos três.

Primeiro, no sentido particular e peculiar de um tipo de criação, ou seja, homem. Isto, como dizemos, traz referência a Cristo, ao Anticristo e à Igreja, que é “um novo homem”. Isto está em conexão com isto que quero falar um pouco mais no início.

Temos que olhar por trás de tudo com uma questão, e esta relacionada ao propósito.

Perguntamos, primeiramente, qual é o propósito divino na criação do homem? A resposta a essa pergunta é que Deus possa ter e receber algo nesse universo que seja para a Sua própria glória. Eu sei que essa é uma afirmação muito abrangente, e eu não posso fazer muito mais nesse momento além de mencionar isso. Por alguma razão, no mistério dos Seus pensamentos e caminhos, Deus teve um investimento, uma herança no homem. Era isso que Ele estava determinado a demonstrar, e isso iria trazer a Ele glória e honra. Portanto, para Sua própria glória, Ele fez o homem. Então em um sentido moral, que é o da responsabilidade, a criação deveria estar adorando Deus, no mais pleno sentido dessa palavra “adoração”. Eu não estou certo de que nós já tocamos no real sentido da adoração. Algumas vezes pensamos que é cantar hinos e orar, ou fazer orações; como que através de um formato religioso, talvez oferecendo louvor, graças ou deixando o coração ser dirigido ao Senhor. Mas eu acredito que há algo mais do que isso, muito além disso, na adoração. De qualquer forma, vamos voltar a isso depois. O ponto no momento é que toda a adoração significa restituir a Deus o que é para Sua glória, Sua honra, Seu louvor, Sua satisfação, e esse evidentemente era o objetivo que motivou Deus na criação, na criação do homem.

Para que isso acontecesse, o homem deveria ser constituído de uma forma peculiar. Ele deveria ser constituído de forma que o que nele houvesse algo que também existia em Deus, e isso gerou uma conexão entre ele e Deus, porque ele era da mesma ordem. Eu não estou falando agora da Deidade ou Divindade, mas da natureza, da constituição. Então o homem foi criado e, na mais profunda realidade do seu ser e constituição, havia o espírito humano. Este espírito era a faculdade para comunhão com Deus, que é Espírito, e não pode ser comunicado e adorado de outra maneira(usando essa palavra de novo no seu pleno sentido), mas apenas “em espírito e verdade.” Então o homem foi uma criação peculiar, constituída de uma maneira especial, para que pudesse haver um ponto de familiaridade com Deus, um link de semelhança na constituição. No Novo Testamento a palavra é, “mas aquele que se une ao Senhor é um espírito”, e, “há um espírito no homem” usando uma declaração do Velho Testamento [1 Co 6:17; Jó 32:8]. Então hoje, enquanto esse relacionamento existe, todo o propósito de Deus tem sua realização possível, e Deus tem um terreno onde pode prosseguir em direção ao Seu grande final. Este é o homem, uma criação peculiar, um tipo particular. É entre o homem assim constituído e Deus que é Espírito, que o Espírito de Deus se move como agente direcionador, governante, e iluminador dos propósitos de Deus.

Nós sabemos o que aconteceu com o primeiro Adão; nós sabemos o resultado de sua falha em crer e obedecer. Foi assim que ele foi separado de Deus, o que significa que o instrumento ou faculdade pela qual o homem tinha união com Deus e se comunicava com Ele, foi separado dEle, e em sua separação se tornou morto, no sentido Bíblico da palavra “morto”. Isso não quer dizer anulado, aniquilado, mas separado de Deus, fora da união com Ele que é sua vida. Mas algo mais aconteceu, e é aí que o Anticristo entra em cena.

Há outro ser no universo de Deus que colocou no seu coração o desejo de ser adorado, de domínio universal, e que também reconhece que só pode alcançar seu objetivo através do homem. Como ele reconhece isso, assim como Deus – que para alcançar Seu fim, precisa ter o homem, um homem constituído de forma peculiar, em relação espiritual com Ele - ele também quer ter o homem constituído de forma específica para estar em relacionamento com ele para seus fins. Então, por trás da compreensão de Adão, Satanás operou para constitui-lo de maneira diferente se encaixando dentro dos seus objetivos, ou para interferir com o homem de Deus, o tipo de Deus. O resultado foi que através da sua alma, o homem está em união com Satanás para seus propósitos; porque a alma que foi capturada pelo inimigo. Se razão, desejo e vontade são os componentes da alma, todos esses três foram capturados por Satanás, e o resultado foi que na raça Adâmica hoje há um tipo de ser que foi ajustado aos propósitos Satânicos, e no qual Satanás está aliado. É uma tragédia dessa criação hoje, fora de Cristo. Não é apenas uma criação caída, algo quebrado, algo debilitado; não é apenas algo pecaminoso, fraco, algo que tem as sementes em corrupção, mas, mais do que isso, o aspecto positivo é que é algo aliado a Satanás. Existe uma aliança, não necessariamente pelo consentimento consciente do homem, mas o fato está lá. Oh, o fato está lá, e mais fundo do que a razão ou consciência, os fatos se apoiam na raiz da natureza das coisas.

Precisamos nos lembrar que isto se aplica da mesma maneira em outra direção, e então quando há uma nova criação em Cristo Jesus; quando Deus restaurou aquela união conosco através da regeneração, quando este espírito que estava morto é ressurreto e ascenso com Cristo e “unido ao Senhor...um espírito”, a união é mais profunda que a razão, que os pensamentos, que os sentimentos. Isto é um fato na essência da natureza das coisas. Se o povo de Deus pudesse pelo menos crer nisso!

Então, pergunte a qualquer homem não convertido, respeitável e decente desse mundo se ele está em aliança com Satanás, se o Diabo está aliado a ele e se há uma união entre eles, e o que ele vai responder? Você dificilmente vai se arriscar a sugerir isso. Você será um homem corajoso se fizer isso. Por quê? Ele não sente, não vê, e isso não ocorre a ele, não chega aos seus pensamentos, mas independente disso, é um fato. É mais profundo que a consciência, mais profundo que sua crença, e oh, quão comum é, eu temo, que seja assim com os santos; que essa união seja mais profunda que a fé. Eu quero dizer que os santos algumas vezes são tentados a não crer ou duvidar que a sua união com Cristo esteja segura porque não a sentem, porque não são capazes de ver ou sentir, mas está lá. Bem, sai um pouco do assunto, mas devemos voltar de novo para nossa consideração principal.

Para as duas coisas, o objetivo de Deus e o objetivo de Satanás, deve haver um tipo que seja apto as suas finalidades e ajustado aos objetivos, e onde aquele que está ocupado com o domínio esteja em relacionamento, um relacionamento vital, deve haver uma união. Nós vimos em nossa meditação prévia que todos os direitos de Deus estão atrelados ao homem. Isto é usar outra frase para adoração – todos os direitos do Deus do universo. Então tudo o que Satanás deseja como direitos seus também está atrelado ao homem.

Isso nos leva ao segundo ponto. É necessário que haja uma encarnação ou personificação desses direitos, assumidos ou não, deve haver uma encarnação. Bem, Adão foi criado. Mas isso não era suficiente. Inocência é uma coisa, o triunfo da responsabilidade moral é outra coisa. Deus nunca estará satisfeito em ter muitos inocentes. Se Ele estivesse, Ele teria nos feito como pequenos bebês e nunca nos deixaria crescer! Mas essa não é a intenção de Deus. A intenção de Deus é de responsabilidade moral; que é a filiação comparada com a infância. Adão deveria ser testado nesse princípio da responsabilidade pelos direitos de Deus, enquanto que eles estivessem empossados nele, sob sua custódia. Deus tinha uma herança nele, e ele foi colocado em teste e falhou, trazendo toda a raça abaixo com ele. Satanás então capturou a raça para seu próprio reino, seu próprio domínio e objetivo, sua própria adoração. Oh, como ele deseja esse louvor! “Todas as coisas eu te darei, se prostrado me adorares”. Isto dito para o Filho de Deus! Se apenas me adorar!

Então o segundo homem veio em resgate. Para o resgate de que? Do homem? Sim: mas mais do que isso, Ele veio resgatar os Direitos de Deus e redimir a possessão comprada, a herança. Que maravilhoso fragmento da carta de Paulo aos Efésios: “A riqueza da glória da sua herança nos santos”. Nós nunca fomos capazes de lidar com isso. Olhamos para nós mesmos como nós somos e tudo mais... recuamos diante dessa palavra. A riqueza de Sua herança nos santos – em nós? Mas tome um ângulo de visão mais amplo. Veja o propósito original de Deus, e você verá a criação que finalmente, em unidade com Deus, vai personificar os Seus propósitos. Nessa criação, Deus receberá nesse universo todos o Seus direitos e adoração – Sua herança nos santos. Eu penso que é isso o que Paulo quis dizer nessa explosão de doxologia na mesma carta, “Aquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que pedimos ou pensamos, segundo o seu poder que opera em nós, a Ele seja a glória na igreja e em Cristo Jesus para todo o sempre.” Glória na igreja e em Cristo Jesus! Isso requer uma encarnação dos direitos divinos e isso nos traz ao ponto onde estávamos no capítulo um.

O último Adão, chegando para resgatar a herança no homem, se torna a personificação dos direitos divinos. Ele entra em cena na arena do universo para ser assaltado pelos poderes selvagens, anárquicos e ilegais daquele que é contra o propósito de Deus, tendo o seu próprio reino em vista. E esses poderes colocam em teste esse último Adão. Em um sentido pleno e universal, ele é testado em relação aos direitos de Deus. A questão é trazida através de uma terrível e simples questão – Eu, ou o Senhor? Isso é tudo que ela equivale, se isso pudesseser medido. Tudo se resume nisso: Eu, ou o Senhor? Minha vontade, Sua vontade? A questão é se Ele iria, por alguma razão, em qualquer circunstância, em qualquer condição, se afastar do terreno de total e absoluta lealdade a Deus. Essa é a questão. Ele pode ser tirado para fora desse terreno? Pode ser pressionado para fora? Pode ser enganado a ponto de esquecer esse terreno? Satanás pode fazer qualquer coisa – e isso é dizer uma coisa terrível – pode ele fazer qualquer coisa, com sua grande, e profunda gama de recursos, pode ele levar o Homem a se mover para fora do terreno de lealdade a Deus e aos Seus direitos? Se isso acontecesse, o que isso representaria? O próprio Cristo em princípio iria se tornar o Anticristo. Ele teria se voltado contra Si mesmo e sido derrotado. O Anticristo marcou pontos. Parece quase inconcebível que Satanás poderia sequer pensar por um instante que ele poderia capturar o último Adão e torna-Lo um instrumento para seus próprios interesses; e ainda assim porque ele ofereceria aquela isca, aquele suborno, fazer aquele apelo tão persistente – Se apenas me adorares! O quanto deve haver no homem, se o reino de Deus por diversas eras é atrelado ao homem, e se o reino de Satanás, com tudo o que ele representa, está atrelado ao homem! Bem, a questão pode ser levantada, “o que é o homem, que dele te lembres?” Quanta coisa deve haver no homem.

Não se admira que haja uma grande batalha pelo homem. Não é de se admirar que houvesse uma batalha terrível, universal e eterna travada no terreno da alma “do homem Cristo Jesus”. Mas que vitória! A vitória em todo o tempo, e pela eternidade, e por todo o universo; uma vitória por todo o propósito de Deus. Que vitória! E se ela representou extensão e consequências tão amplas, que amargor ela deve ter causado. Quem poderá conhecer a profundidade desse conflito, e quão aterradoras eram aquelas trevas? Nunca podemos exagerar quando nos referimos àquilo que o Filho de Deus passou. Por isso os direitos de Deus se tornaram eternamente encarnados no “homem Cristo Jesus”. Ele não apenas veio para a carne, Ele veio em carne. Eu gostaria que você percebesse isso na epístola de João. Isso não quer dizer que Ele veio e tomou a forma humana para servir a um propósito e depois a abandonou; Ele ainda é Homem. “Há...um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem”(1 Tm 2:5). Você pode notar no livro de Apocalipse, que o Senhor Jesus fala de Si mesmo, ou Se apresenta como, “eu, Jesus” (Ap.22:16). Jesus é sempre o título da Sua humanidade, e neste Homem os direitos de Deus são personificados, encarnados e assegurados de forma triunfante.

Mas Satanás ainda tem seu reino no homem caído. Ele tem seu reino, tem sua conexão, e recebe o que ele deseja. Este é o ponto: ele também está se movendo e trabalhando em direção ao uma encanação e personificação concentrada dos seus direitos; e então, como vimos na meditação prévia, temos esses três estágios na primeira epístola de João, no que diz respeito ao Anticristo. Temos Anticristo como um espírito: ”todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus, pelo contrário, este é o espírito do anticristo” (1 Jo 4:3). Então é dito, “...muitos anticristos tem surgido..” (1 Jo 2:18). Este é o Anticristo corporativo. (você verá que isto nos relaciona com a igreja pelo outro lado). Então temos uma afirmação definida, “Este é o anticristo” (1 Jo 2:22). Tudo está se dirigindo para uma suprema encarnação e personificação do espírito do Anticristo. Se você tem alguma dúvida a respeito de algumas das coisas que eu acabei de dizer com referência à semelhança, leia de novo 2 Tessalonicenses 2:3-9: “...o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia (energia) de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira”. De acordo com a energia de Satanás! O Anticristo é energizado por Satanás, tanto como Cristo (no sentido de ungido) é energizado pelo Espírito de Deus. Assim como a igreja, que é o Seu Corpo, é energizada e usada pelo Espírito Santo, o Anticristo é energizado e usado por Satanás.

Qual é o primeiro objetivo do Anticristo? É, como João diz, anular Jesus Cristo. Quero que você entenda isso, isso é precioso. Em 1 João 4:3, lemos: “todo espírito que não confessa a Jesus...”. Na margem é traduzido, “todo espírito que anula Jesus”. Existe alguma disputa sobre as palavras exatas no original, mas eu penso que o significado dessa tradução marginal é a mais favorável– anula ou nulifica Jesus, O coloca para fora, tira o Seu valor, O coloca de lado. Você olha para o contexto, e você vê, claro, que não é meramente uma questão de Jesus como uma figura histórica, mas de quem Jesus é; esse é o ponto em questão. O contexto torna perfeitamente claro, e você vai ver por outras referências ao Anticristo nessa carta que é a questão do Pai e do Filho. O segundo capítulo mostra claramente que esse é o caso. Então, a primeira obra do Anticristo é a anulação de quem Jesus é. O que isso significa? Bem, Jesus é o Filho de Deus encarnado. Isso é o que Jesus é: Deus manifesto em carne. Para anular todo o sentido da encarnação é o primeiro objetivo do Anticristo. Por quê? Quais são os elementos disso?

Bem, certamente, em primeiro lugar, essa é uma reação de Deus à queda, Deus reagindo contra aquilo que Satanás fez no início, através de Cristo. “Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo... não imputando aos homens as suas transgressões” [2 Co 5:18]. Foi Deus manifesto em carne, reagindo a tudo que aconteceu através da interferência de Satanás. Então o único jeito de reagir contra a intervenção divina é anular quem Jesus é. Mas ainda piora. Não é apenas o anular Deus em Sua reação, mas é o anular da questão que está atrelada a essa resposta de Deus: e isso diz respeito à herança e o reino do homem de Deus. O Homem é o herdeiro: o reino é a herança. “Vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino”[Lc 12:32]. Nós somos “herdeiros de Deus... co-herdeiros com Cristo” [Rm 8:17]. “Deste-lhe (homem) domínio sobre as obras da tua mão” [Sl 8:6]. O homem de acordo com o coração de Deus é o herdeiro de todas as coisas; o reino é sua herança. Anular Jesus é uma outra forma de dizer, “Mas os lavradores, vendo o filho, disseram entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo e apoderemo-nos da sua herança.” [Mt 21:38] Ou seja, anule Jesus.

Talvez você imagine porque eu estava tão alegre há alguns instantes chamando sua atenção para isso. É por causa do que vemos em 2 Ts 2:8: “então, será, de fato, revelado o iníquo, a quem o Senhor Jesus matará (ou anulará) com o sopro de sua boca.” A primeira coisa que o Anticristo faz é anular Jesus, e a última coisa que acontece é que, no aparecimento de Jesus, ele mesmo é anulado. Isso é tremendo, não é? Essa é a reação divina.

E onde entra a igreja dentro disso tudo? A igreja é o Corpo de Cristo: somos membros de Cristo. Nessa conexão nós temos a suprema declaração do Espírito através de Paulo, “Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo” [1 Co12:12]. O artigo está no original, “o Cristo”. Vimos que o Anticristo é um espírito: e o Anticristo também é um corpo corporativo. Existem muitos anticristos, muitas encarnações sob um espírito, uma imitação do “um” corpo de Deus, tudo se conduzindo para uma grande manifestação. “Assim também com respeito a Cristo”: um Corpo, muitos membros, e cada membro do Corpo é chamado para o propósito de Deus pela encarnação dos Seus direitos, em união vital com Cristo como o Cabeça do Corpo. Então a igreja é escolhida nEle antes da fundação do mundo para ser o vaso supremo e instrumento no qual a herança de Deus está assegurada; usando as palavras de Paulo, para ser “a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas” [Ef 1:23] - a herança de Deus nos santos. Amado, isso explica exatamente o que está acontecendo aos santos; e oh, seria tão bom que os santos pudessem reconhecer isso mais claramente, que o ponto supremo com Deus agora não é o que eles podem fazer por Ele neste mundo no sentido de atividades e obras, mas o ponto supremo com Deus hoje é a conformidade com a imagem do Seu Filho, a obra interior nos santos daquilo que foi aperfeiçoado em Cristo. “Pois, tanto o que santifica como os que são santificados, todos vêm de um só” (Hb 2:11), e aquilo que foi consumado na Cabeça, naquele representante, o primogênito dos Homens nessa nova corrida, tem que ser forjado em cada um dos seus membros. Isso envolve, por um lado, triunfo sobre o Anticristo como um princípio, uma lei, uma natureza e poder, e, por outro lado, a manifestação da glória de Deus: e isso é o que está acontecendo.

Eu digo que gostaria que fosse mais claramente reconhecido, que é mais importante para Deus que sejamos conformados a imagem do Seu Filho do que estejamos nos empenhando em fazer tantas coisas para Ele. Parece que nós colocamos um enorme valor sobre o que estamos fazendo, tanto que, se o Senhor tira de nós a capacidade de fazer e nos leva a provas e testes de maneira interior, onde todas as virtudes divinas são necessárias, e todas as nossas virtudes são provadas sem valor, nos revoltamos e desejamos fazer alguma coisa. Vamos sair dessa situação e fazer alguma coisa, trabalhar. Isso acontece tantas vezes quando somos colocados de lado pelo sofrimento e o Senhor está tentando produzir algo mais de Cristo: paciência, tolerância, amor, compaixão. Desejamos sair rápido da situação, para poder fazer alguma coisa. Ficar nessa situação é não fazer nada! E é verdade que, quando o Senhor realmente escolhe trabalhar em uma pessoa, Ele ocupa muito mais do Seu tempo em mudar aquela vida à Sua imagem, do que Ele faz levando aquela pessoa pelo mundo fazendo toda a sorte de coisas. O que Deus está fazendo? Ele está preparando a igreja para dominar. Ele está tornando o reino algo interior, antes de ser expresso de forma exterior. Ele está fazendo algo secreto, antes de o expor a um universo maravilhado. Ele está construindo Cristo dentro para o dia da Sua manifestação. Se você tem dúvidas quanto a isso, existe um texto nas Escrituras que traz a prova conclusiva: “quando vier para ser glorificado nos seus santos e ser admirado em todos os que creram” (2 Ts 1:10); não por todos os que creram, mas em todos os que creram. Este será o dia da manifestação dos filhos de Deus; não os bebês de Deus, mas os filhos de Deus. Deus está meticulosa e diligentemente envolvido agora nesse trabalho profundo e difícil, considerando o nosso ponto de vista. Se Paulo é um tipo para essa dispensação, a parte mais frutífera da vida de Paulo não era quando ele estava correndo pelo mundo, mas quando ele estava na prisão e escreveu as cartas. A maior revelação que chegou a nós de Jesus Cristo foi dada através daquelas últimas cartas da prisão. Somos levados ao tempo “antes da fundação do mundo”, levados através das eras, levado à era das eras; e nos são desvendadas essas maravilhosas revelações. As maravilhas descritas nas orações de Paulo são suficientes para nos deixar sem fôlego: “para saberdes qual é a esperança do seu chamamento...” (Ef.1:18). Sente e medite nisso. Essa é apenas uma das petições. Podemos juntar inúmeras coisas nesse fragmento, “a esperança do seu chamamento”. Mas isso é apenas uma coisa, e sobre ela segue, “a riqueza da glória da sua herança nos santos...” Pense nisso! Davi iria dizer, Selah! Então ele continua “e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder; o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos e fazendo-o sentar à sua direita nos lugares celestiais, acima de todo...” (Ef 1:19-21). Três fragmentos de uma oração! Você consegue compreender isso, pode vislumbrar isso? Que revelação! Que pensamento concentrado da essência divina! Mas Paulo precisou ficar preso e impedido de todas as suas atividades exteriores para que essa revelação pudesse irromper. Sim, eu acredito que tinha que ser assim.

Vou encerrar lembrando, de novo, de uma coisa que está em conexão com o que está acontecendo conosco. Eu colocaria assim: que Deus está buscando de forma definitiva, deliberada e persistente anular o Anticristo em nós, trazendo à luz o princípio da cruz, porque, até que a cruz tenha sido forjada dentro de nós, somos energizados por uma vida da alma que tem uma ligação com o adversário. Nossa razão é tão energética. Tudo é atividade da alma na mente e razão. O homem natural é completamente alienado de Deus e não pode conhecer as coisas do Espírito de Deus, e por isso, todos os arraçoamentos do homem natural não conseguem alcançar os pensamentos de Deus. É, portanto, o anticristo em princípio. Alguma coisa aconteceu: não pode alcançar Deus; está se perdendo no caminho o tempo todo. Ainda assim homens estão trazendo o poder de sua razão para tentar se conectar com as coisas de Deus e isso resulta em racionalismo e a anulação de Jesus. Não é esse o fruto do racionalismo; a anulação de Jesus naquilo que Ele é? Mesmo no âmbito da religião o Anticristo opera, usando a razão de um homem não crucificado, a emoção, e a vontade do homem natural. Deus está buscando cortar o princípio do Anticristo. E mesmo os filhos de Deus podem negligenciar lamentavelmente esse ponto. O espírito do Anticristo tem uma extensão, partindo de um desejo ou ato simples e inocente, até uma expressão positiva por meio de uma política plenamente desenvolvida, uma crença, uma filosofia, ou uma ciência. Isso é o que somos hoje. Vemos isso se desenvolvimento no mundo. As potencialidades e o destino do homem, como ele é, sem Deus, sem a necessidade dEle, sem uma necessidade do Espírito de Deus, sem necessidade de regeneração. Homem – que maravilhosa criatura ele é, o que ele pode fazer! Essa é a crença que tem crescido e ganhado poder neste mundo. Toda a tendência segue na direção de que o domínio deste mundo esteja unido sob alguns super-homens, para que no final seja conduzido para apenas um. Essa é a concepção do homem tendo todos os recursos em si mesmo, a raiz de tudo nele mesmo, e tudo isso se tornando uma crença, uma política. É aí que tudo termina; mas, amado, frequentemente tudo começa como algo muito simples e se manifesta em um desejo ou ato simples ou inocente. Em um caso isso levou ao assassinato, no caso de Caim. É tudo um espírito, um princípio. Você vê Caim colocando o sangue de lado, a expiação, a necessidade de uma morte substitutiva. Tudo o que o Cristo significa para nos aproximar de Deus, Caim colocou de lado, e trouxe as suas próprias obras, potencialidades, e agiu como se, naquela base, poderia haver uma comunicação com Deus. Este é o espírito do Anticristo, e quando ele encontrou o julgamento de Deus, isso levou a um assassinato. Quando ele descobriu que Deus rejeitou isso, o espírito do Anticristo surgiu em um assassinato.

Você diz que isso é muito terrível, nenhum santo deveria se encaixar aí. Eu não estou pensando que você vai seguir da mesma maneira e matar o seu irmão por causa disso. Mas, em princípio e espírito é isso, alguns filhos, servos de Deus, obreiros Cristãos começam a se afirmar e empregar seus próprios recursos, suas forças e sabedoria nas coisas de Deus, e, mais cedo ou mais tarde, chegarão a um beco sem saída, percebendo que não receberão a bênção de Deus lá. Daí surge um espírito de ressentimento e amargura em seu coração. Algum simples filho de Deus vai entrar no chicote por isso. Essa afirmação falsa vai, em algum momento, envolver outras pessoas em malícia, ódio, no espírito do assassinato. Você não pode aceitar isso, mas me deixe te lembrar de Davi. Sim, Davi era santo, era um homem de Deus, e conhecia o Senhor desde sua infância. Mas você lembra o episódio doloroso, terrível e trágico da vida de Davi, quando ele fez o censo em Israel. Até Joabe, um homem carnal, viu o perigo e implorou para que não fizesse isso. Mas não, na força de sua vontade ele colocou Joabe de lado. “Eu decidi fazer isso, que seja feito.” O censo foi feito como desejava, e então o anjo do Senhor disse, “Escolha entre três coisas, fome, guerra ou peste.” Uma espada de julgamento foi desembainhada, e o flagelo correu por toda a terra: os habitantes de Israel foram ceifados pela pestilência, até que Davi, quebrantado, clamou ao Senhor: “Oh meu Senhor, sou o responsável. O que essas ovelhas fizeram? Que a sua ira se volte contra mim.” Essa foi uma ocasião terrível. Por quê? O que estava errado em contar Israel? Por um lado, o censo de Israel sempre esteve de acordo com o princípio da redenção. Eles foram numerados apenas no contexto da redenção, que é o seu valor para Deus como redimidos. Esse é o único valor que conta, se eles são redimidos para Deus. Deus não estava interessado nos siclos do santuário, no dinheiro da redenção. Davi estava buscando conhecer seu poderio humano, quão grande reino tinha. Esse é o princípio do Anticristo. Um santo é imobilizado e preso por essa isca levando às mais trágicas consequências. Quão necessário é então andar no Espírito. Quão necessário é para o Senhor manter a cruz operando contra a carne, para que a ambição, determinação, força natural; e tudo o que está no terreno de Satanás, no qual ele acampa. O que ele almeja? Desonrar o Senhor, tomar os Seus direitos, e isso através dos santos.

Uma das maiores tragédias é que a igreja tem servido ao propósito de Satanás tão bem, porque não é uma igreja crucificada. Oh, deve haver um estado subjetivo de circuncisão, no coração, o que Paulo chama de despojamento do corpo da carne. O Anticristo se move um pouco mais próximo de nós. Nós só pensamos no Anticristo como uma pessoa que vai surgir no futuro de acordo com a profecia, atrelado a certos acontecimentos. Sim, é bem verdade, mas João diz que Anticristo em primeiro lugar é um espírito, e então diz que o Anticristo é constituído de um corpo. Esse último é a imitação de Satanás do Corpo de Cristo: algo corporativo em um espírito, para trazer o seu reino, trazer esse homem. Quando esse homem chegar e tiver sua curta estação de reino, domínio, ele será muito terrível e real, e isso está muito claro no livro de Apocalipse. Mas a questão está mais próxima que profecia, e penso que qualquer profecia que não tem uma aplicação espiritual imediata perdeu seu objetivo. A profecia deve vir a nós hoje. O Anticristo está muito próximo da natureza de cada um de nós.

Então, qual é a questão? Tudo deve nos trazer de uma vez por todas ao mesmo ponto que o Senhor Jesus chegou: “Eu vim para fazer a Sua vontade, o meu Deus”; “Eu me deleito em fazer a Sua vontade”; “não a minha vontade, mas a Sua”. Resumindo, é a entrega ao Senhor; não entrega para o serviço ao Senhor, para ser usado, para bênçãos, receber algo, mas apenas entrega de si mesmo ao Senhor para Sua glória da maneira que Ele vê que vai a receber. Tudo o que importa é se o Senhor está recebendo a glória. Se no fato de não fazer nada o Senhor pode receber a glória, tudo bem. Se o Senhor quer que eu vá até os confins da terra, a um grande custo, e assim ele pode ter a glória, tudo bem. Não é o fato de ser aqui ou lá, isso ou aquilo; as consequências não importam. O que importa é se o Senhor está recebendo o que Ele busca em mim. Este é o espírito de Cristo, e qualquer coisa diferente e contrária a isso é o espírito do Anticristo.

Então podemos entender o que o Corpo de Cristo é, para o que ele existe, e o que o Senhor busca nele. Isso traz tudo para fora do contexto da doutrina, ensino, teoria, e torna tudo extremamente prático.