Austin-Sparks.net

Comunhão dos Seus Sofrimentos (1951)

por T. Austin-Sparks

Primeiramente publicado na revista "A Witness and A Testimony", de Set-Out 1951, Vol. 29-5. Origem: "The Fellowship of His Sufferings (1951)". (Traduzido por Maria P. Ewald)

Leitura:  2 Coríntios 1:3-5; 2 Coríntios 6:8-13; 2 Coríntios 2:4; 2 Coríntios 11:23-28; 1 Coríntios 4:9-13; 2 Coríntios 1:8-10.

"Porque, assim como os sofrimentos de Cristo se manifestam em grande medida a nosso favor..." (2 Coríntios 1:5).

Temos muita coisa agregada nas passagens que acabamos de citar, mas a mensagem que tenho no coração limitar-se-á a duas coisas: em primeiro lugar, aos sofrimentos e o sofrimento; em segundo lugar, à necessidade do sofrimento e os valores nele contidos.

O fato e a abrangência do sofrimento

Não precisamos discorrer muito sobre o fato e a realidade dos sofrimentos. Sabemos que o povo de Deus não está isento deles e não acho que seja necessário elaborar muito a esse respeito. Existem muitos sofrimentos decorrentes de sermos o povo de Deus; e talvez devamos meditar um pouco sobre eles. Também existem sofrimentos que infligimos a nós mesmos, que seriam desnecessários, mas não estou abordando esse tipo de sofrimento no momento. Me refiro ao fato da existência dos sofrimentos de Cristo, que são uma porção que o povo de Deus tem em comum. Quando eles nos sobrevém, isso não indica que exista nada de errado conosco. Na verdade, antes de concluirmos, veremos que é exatamente o contrário.

Quando pensamos sobre esses sofrimentos, tomando Paulo como um grande exemplo e intérprete, somos levados a ver que não se tratam de meros incidentes particulares, terrenos. Mesmo quando assumem forma e coloração terrenas em razão das situações, circunstâncias e eventos que os envolvem, ainda assim esses sofrimentos têm um alcance muito maior do que teria qualquer incidente local, temporal e terreno. A extensão espiritual desses sofrimentos é universal. Eles vão além de nós mesmos, de nossos círculos, nossas vidas, nosso tempo e de qualquer coisa do aqui e do agora. Adotaria a palavra 'dispensacional', se ela não fosse tão mal interpretada. Os sofrimentos de Paulo abrangeram toda uma dispensação e são efetivos ainda hoje, depois de tantos séculos, e tocaram todos os domínios, tanto no âmbito celestial como no reino das trevas. Esses sofrimentos foram mais do que apenas incidentes da sua vida, por mais dolorosos que tivessem sido. Eles se encaixam em uma esfera de elevada importância e eficácia. Eles representam, de maneira geral, o 'retrocesso' de um vasto e poderoso sistema antagônico a tudo o que é de Cristo.

Devemos, portanto, aceitar o fato desses sofrimentos e ajustar-nos ao seu sentido espiritual. Se nós tivermos a concepção de que a vida cristã será um perpétuo piquenique, entraremos em todos os tipos de dificuldades, perplexidades e desapontamentos. Se buscarmos escapar dos sofrimentos de Cristo, vamos cortar a vitalidade essencial que produz valor espiritual em nossas vidas. Preste atenção nisso. Temos que aceitar o fato de que, sendo o povo do Senhor, nossa herança é a herança dos sofrimentos de Cristo, e não devemos tentar evitá-los.

O sofrimento dentro dos sofrimentos

Usei as seguintes palavras: os sofrimentos e os sofrimentos; nas formas plural e singular. O sofrimento, no singular, é o sofrimento que está dentro dos sofrimentos. Às vezes, é o sofrimento que causa os sofrimentos [no plural]. Tome Paulo, por exemplo, e o sofrimento que ele menciona em 2 Coríntios 1:8-10:  "a aflição que nos sobreveio na Ásia" [tradução da versão utilizada pelo autor]. A palavra 'aflição' vem de uma raiz latina que significa 'um mangual', e representa o manejo desse mangual sobre o corpo nu de um homem amarrado, machucando, quebrando e espancando; é uma palavra forte. Paulo diz que foi isso que aconteceu com ele na Ásia. “Porquanto foi acima das nossas forças, a ponto de desesperarmos até da própria vida. Contudo, já em nós mesmos, tivemos a sentença de morte ...”. Eis a resposta para a indagação: 'É a morte!'.

Esse é o sofrimento dentro dos sofrimentos. Não imagine nem por um momento que isso se referia apenas à uma questão física. Um homem que passou por todas aquelas experiências que foram registradas na vida do apóstolo Paulo, e que ainda podia afirmar que partir e estar com Cristo era muito melhor, certamente não tinha medo de morrer [2Co 11:23-27; Fp 1:23]. De jeito nenhum! Deve ter havido algum sofrimento dentro dos sofrimentos. "Foi acima das nossas forças": isso era algo interior; não se tratava de uma grave doença, que poderia ter levado Paulo à morte a qualquer momento. O que seria esse sofrimento, então? Pode ter sido um sofrimento decorrente do relato que ele recebeu sobre as condições em Corinto, pois foi nessa época que ele recebeu a notícia do terrível estado das coisas ali, registrado nessas cartas, quando disse: "pesa sobre mim diariamente, a preocupação com todas as igrejas" (2Co 11:28). Mesmo que uma doença possa tê-lo afligido, sabemos que as enfermidades do corpo muitas vezes podem ser causadas pela dor do coração; os sofrimentos externos às vezes são o resultado de uma angústia interior. Portanto, temos o sofrimento dentro dos sofrimentos.

Há um sofrimento espiritual por amor de Cristo; e aquilo que Paulo referiu como "a sentença de morte", apesar de inexplicável para nós, parece sugerir que ele entrou em um estado espiritual terrível devido a certas condições. Se fosse tentar reformular essa situação, diria que Paulo recebeu essas notícias extremamente ruins sobre o estado das coisas na igreja de Corinto, talvez junto com outras de outros lugares também, e ele pode ter sido subjugado por seu sofrimento, afirmando: 'Vale a pena? Não seria tudo vão? Essa não é uma situação totalmente desesperadora? Não estou desperdiçando minha vida derramando-a para essas pessoas?' Quando começamos assim, não encontraremos um fim. Descemos cada vez mais, até que as águas do desespero gradualmente se fechem sobre nós. Tentamos orar e não conseguimos, pois um homem que duvida nunca pode orar. Ele pode chorar, mas não pode orar. Um homem que se entregou a esse tipo de pensamento é incapaz de orar; o céu está fechado diante dele. E Paulo, por assim dizer, poderia estar se questionando: 'Qual é o significado disso?' A resposta é: 'É a morte; ao longo dessa linha você encontrará a morte; se você descer por esse caminho, não terá saída, nem haverá um retorno para o alto, será o fim de tudo: a morte!'.

Não vou prosseguir até o vislumbre de como Paulo chegou ao ponto de inflexão e à tão grandiosa libertação que ele mencionou. Isso não envolve nossa consideração nesse momento. Meu ponto é que a morte mencionada aqui era espiritual, não física. Ele estava saboreando algo da verdadeira natureza da morte. A morte é a sensação de estar excluído de Deus, do céu estar fechado diante de nós, de não haver caminho de volta, nem saída, estamos calados e aprisionados, chegamos ao fim; essa é a sensação em nosso interior, impressa sobre nossa alma. Isso é mais severo do que a morte física. Alguns de nós, em algumas situações, certamente ficaríamos felizes em morrer, no sentido físico. Mas essa é a morte espiritual, e ela é terrível, infernal; não há alegria nenhuma nela. Provar isso é saber algo dos sofrimentos de Cristo. Esses sofrimentos podem ser conhecidos de outras maneiras, mas não estamos tentando aqui definir, em detalhes, toda a gama dos sofrimentos de Cristo, mas apenas desejo enfatizar o fato de sua existência.

A necessidade e valores dos sofrimentos de Cristo

Qual é o ponto central disso tudo, no que nos diz respeito? Cada um deverá fazer sua própria aplicação pessoal, pois não sei a razão de ter sido conduzido à esta mensagem. Só o Senhor conhece Sua própria sabedoria. Mas temos alguns assuntos muito práticos ligados a isso; e assim chegamos à segunda parte do nosso assunto, a saber, da necessidade dos sofrimentos e dos valores neles contidos. Deve estar claro para todos nós, de uma vez por todas, que os sofrimentos de Cristo são absolutamente necessários. Vou dizer algo muito forte: se você não sabe nada sobre os sofrimentos de Cristo, há algo de errado com você como cristão. É claro que não estou falando de pessoas que acabaram de entrar na vida cristã, embora o sofrimento às vezes seja encontrado logo no início de nossa caminhada. Mas a obediência e a fidelidade logo conduzem à experiência de alguma das formas dos sofrimentos de Cristo. Se você está evitando esses sofrimentos e está se rebelando contra eles, está seguindo uma linha totalmente errada. Eles são parte da porção que cabe a cada um dos filhos de Deus. Não digo que cada um de nós os experimentará em igual medida, ou passará por sofrimentos da mesma natureza, mas todos nós teremos uma porção deles. Pergunte ao Senhor se os momentos difíceis pelos quais você tem passado não podem, afinal, se encaixar nisso. Você tem pensado neles apenas como circunstâncias, como decepções, coisas que estão atuando para o seu infortúnio, sua desvantagem. Mas, espere! Veja se estes sofrimentos não estão, afinal, ligados à sua vida espiritual, se eles não têm relação com o seu crescimento espiritual. Pergunte a si mesmo, examine esta questão.

Realidade por meio do sofrimento

Esses sofrimentos são necessários com diversas finalidades. Em primeiro lugar, eles são essenciais para manter as coisas reais, práticas e vivas em nossa caminhada. O Senhor não permitirá que nenhum de nós viva hoje fundamentado no passado, em uma teoria, uma tradição, uma doutrina. Ele só nos permitirá viver daquilo que é real, prático e vivo. Considerando nossa constituição natural, não viveremos assim a menos que sejamos obrigados a isso. Neste momento, poderia fazer muitas confissões, mas elas não teriam muito valor, exceto a título de ilustração. Se hoje sei pelo menos um pouco sobre o Senhor e sobre as coisas do Senhor, posso afirmar com toda a franqueza que isso foi derivado do sofrimento. Não poderia e não teria aprendido dEle, a menos que o Senhor tivesse me conduzido à esse aprendizado, me ensinando em uma escola muito profunda e prática, mantendo as coisas vivas, e cada pedacinho de ministério brotou de alguma nova experiência. É uma lei que se aplica a todos nós. O fato é que esses sofrimentos são absolutamente essenciais para manter as coisas reais; e você sabe tão bem quanto eu que as pessoas desejam realidade. Elas têm o direito de dizer: 'Como você conheceu isso? Você já provou disso? Quanto isso significou para você nas horas mais difíceis da sua vida, quando as coisas estavam além de sua capacidade de suportar? Isso também se provou uma verdade naqueles momentos?' Se não formos capazes de dizer, de todo o coração, com total sinceridade: 'Descobri que o Senhor é assim em minha experiência, foi real; submeti essa verdade a um teste completo e provei o resultado'. Se não for assim, não passamos de uma fraude. O Senhor não aceita fraudes; portanto, Ele nos mantém vivos. A realidade é obtida por meio do sofrimento.

Crescimento por intermédio do sofrimento

Progresso e crescimento também são garantidos por este meio. Toda a natureza declara essa verdade. O crescimento, o desenvolvimento e o aumento são derivados daquele poder expansivo, daquele rangido, do gemido e da dor dentro de um organismo. Na vida espiritual também é assim. Falamos sobre dores de crescimento. Acredito que esse não seja o termo científico, mas é uma expressão que nos ajuda. Sim, existem as dores de crescimento, e os sofrimentos de Cristo nos membros de Seu Corpo estão relacionados com o seu crescimento. A diferença é que nas dores do crescimento é o fator do crescimento que provoca as dores, enquanto aqui, no sentido espiritual, são as dores que produzem o crescimento depois. Crescemos por meio do sofrimento, não há dúvida disso. Mostre-me uma vida espiritual madura e veremos a encarnação de muito sofrimento - nem sempre físico - mas esta é uma vida que passou por experiências. Paulo encontrou seu ponto de inflexão ali - "para que não confiemos em nós, e sim no Deus que ressuscita os mortos"; uma nova descoberta a partir das profundezas. Quando ele tocou no fundo, Paulo descobriu Deus de uma nova maneira: "o Deus que ressuscita os mortos". Esse conhecimento dEle veio ao longo dessa linha. Aí estão os valores do sofrimento.

Habilidade desenvolvida pela sofrimento

Observe, então, o que Paulo disse neste primeiro capítulo novamente - "Deus ... que nos conforta em toda a nossa tribulação, para podermos...". Temos muitas coisas contidas nessa expressão! Isso remete à um estoque no sentido comercial, a um meio de serviço, não é? Muitas vezes podemos passar por maus momentos devido à nossa falta de habilidade, comparando a nós mesmos com outras pessoas e lamentando pela nossa falta de habilidade nisso e naquilo. Oh, como precisamos de habilidade! Mas qual é a maior habilidade de todas, afinal? A melhor e mais fecunda habilidade que podemos ter é sermos capazes de ajudar as pessoas nas experiências profundas e difíceis de suas vidas espirituais: poder explicar o sentido dos tratos de Deus com elas, mostrar-lhes qual deve ser o resultado do que elas estão passando, prover algum apoio por meio de conselhos derivados de um conhecimento real - baseado no conforto que nós mesmos recebemos de Deus. Esse é serviço verdadeiro, assim edificamos o Corpo de Cristo, a Casa de Deus - quando somos realmente capazes, de forma espiritual, de fortalecer aquele que sofre. Isso vem por meio do sofrimento.

Você está passando por isso, está passando por um momento difícil? A que você está o atribuindo? Você é do Senhor? A sua vida está comprometida com Ele? Então veja se você realmente consegue separar correta e apropriadamente o seu mau momento de sua vida espiritual. Se você puder, tudo bem, apenas descreva suas dores como a porção comum de qualquer outra pessoa que não seja cristã. Mas não, você não pode separar essas duas coisas. Está tudo interligado. Todo esse sofrimento resultará em algum efeito, de uma forma ou de outra, seja para o aumento ou para perda em sua vida espiritual. Mas, oh, vamos nos ajustar! Se os sofrimentos de Cristo abundam para nós, esses são os sofrimentos de Cristo. Eles podem ser sofrimentos da alma, podem estar na esfera física, podem estar combinados, mas o Senhor é soberano nesses sofrimentos, com vistas a fins grandiosos, benéficos e valiosos.

Sofrimento e amor

Concluo lembrando-vos desta outra palavra que o Apóstolo dirigiu aos coríntios - "Vos escrevi... não para que ficásseis entristecidos, mas para que conhecêsseis o amor que vos consagro em grande medida" (2Co 2:4). Você não pode ter amor sem sofrimento. As duas coisas andam juntas. Observe o seguinte, sua disposição para sofrer, sua atitude para com o sofrimento, provará a medida do seu amor pelo Senhor. Muitas pessoas não estão experimentando os sofrimentos de Cristo porque não têm amor suficiente pelo povo do Senhor. Se você realmente ama um filho de Deus, você vai sofrer por ele. Se você tem um coração cheio de amor pelo povo de Deus, vai sofrer por ele. Se você ama o grupo dentre o povo do Senhor que Ele juntou a você, sofrerá por eles. Se você tem um coração que ama o seu Senhor, sofrerá com o Ele quando vir Seu Nome desonrado e Seus interesses contrariados. Nosso amor é a medida de nosso sofrimento. Se nosso sofrimento for pequeno, a raiz desse problema pode ser um amor pequeno demais.


Em consonância com o desejo de T. Austin-Sparks de que aquilo que foi recebido de graça seja dado de graça, seus escritos não possuem copirraite. Portanto, você está livre para usá-los como desejar. Contudo, nós solicitamos que, se você desejar compartilhar escritos deste site com outros, por favor ofereça-os livremente - livres de mudanças, livres de custos e livres de direitos autorais.