por
T. Austin-Sparks
Publicado pela primeira vez na revista "A Witness and A Testimony", julho-agosto de 1952, Vol. 30-4. Origem: "Spiritual Exercise". (Traduzido por Maria P. Ewald)
“Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal” (Hebreus 5:14).
“Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (Hb 12:11).
O encargo do meu coração se resume nessa palavra: 'exercício'. Seu sentido é bem literal. A palavra grega traduzida como 'exercitado' nos textos acima se parece muito com a palavra usada no português. É claro que teria sido impossível para os tradutores adotarem outra palavra, mas veremos que a palavra grega usada no original tem um sentido parecido com 'ginástica'. Se quisermos usá-la alternativamente nos textos acima, soaria assim: 'para aqueles que já fizeram ginástica em relação a essa questão do pleno crescimento'. 'Exercitados’ significa algo assim - aqueles que fizeram ginástica para atingir o desenvolvimento.
Descobriremos que o objetivo deste exercício se relaciona com algo muito importante. Não está relacionado apenas ao mero desenvolvimento, se tornar maior; mas está atrelado àquilo que chamamos de capacidade - isto é, ter habilidade ou ser capacitado para as coisas que se deve fazer. Esse é o objetivo Divino neste exercício claramente estabelecido nesta carta aos hebreus. A capacidade é uma questão extremamente vital, seja no âmbito natural ou espiritual. É importante ter capacidade, habilidade, e é muito angustiante descobrir como são poucos, até mesmo dentre o povo do Senhor, que tem verdadeira capacidade espiritual. Você verá o que isso significa à medida que prosseguirmos. Mas devemos ter claramente em vista o objetivo deste exercício, para não nos ficarmos equivocados. Não é apenas ser alguém, mas ser capaz de fazer uma tarefa específica - ter capacidade. Na ginástica você pode fazer algo para satisfazer sua vontade, apenas para se desenvolver, para ser alguém, mas o objetivo real aqui é ter habilidade de fazer coisas, ser capaz de muito mais.
Um fato inusitado é que todo esse exercício espiritual está muito relacionado a um "depois". Você perceberá que encontrará depois os valores desse exercício, dessa capacidade aumentada. Pode haver, é claro, um “depois” mais imediato, mas haverá, sempre, o grande "depois”. Isso porque descobriremos que exatamente quando as pessoas estão começando a ter um pouco de capacidade - porque leva muito tempo para a maioria de nós obtê-la - é hora de ir para casa. O ginásio fecha, partimos para o Senhor. A vida sempre se resumiu em um contínuo exercício, sem ‘afrouxamento'. Não nos exercitamos por um tempo e depois elaboramos os valores que obtivemos durante o resto de nossas vidas. Aqui estamos nós, aqueles que já percorreram esse caminho por algum tempo e estão na última volta - ainda estamos aqui no ginásio, e parece que vamos estar nele até o fim. Toda esta questão de aumento de nossa capacidade continua até nosso último dia, e nosso último suspiro de nosso último dia nesta terra. Então, para que tudo isso? Deve haver um grande depois, ou a vida não passa de um enigma profundo e terrível. Por isso as Escrituras nos dão tanta ênfase e abundantes evidências de que tudo isso está relacionado a um grande depois. O foco é capacidade para algo, habilidade para realizar nos ’séculos dos séculos’.
Essa afirmação expande muito a abrangência de nossa abordagem, e não vou entrar nesse assunto. Tudo o que estou afirmando é que essa deve ser a razão para nosso exercício ou não consigo compreender por que não podemos acabar com ele rapidamente, e então fazer aquilo para o qual fomos preparados pelo resto do nosso tempo aqui. Mas a preparação continua indefinidamente, e nunca terminará enquanto estivermos aqui.
Qual é a esfera deste exercício? O texto de Hebreus fala sobre ter os sentidos exercitados. Bem, é claro que isso é muito simples e de fácil compreensão. Temos cinco sentidos em nosso homem natural e físico. Temos nossa visão, audição, olfato, paladar e tato. Esses são os cinco sentidos de nossa vida física natural. Mas também existe um homem interior chamado "homem interior do coração" [1Pe 3:4], e esse homem interior tem cinco sentidos que correspondem aos cinco sentidos do homem exterior. Temos uma faculdade de visão espiritual, de audição espiritual, de olfato ou percepção espiritual, de paladar espiritual e tato espiritual, e esses sentidos são muito importantes para a vida do homem interior - sim, até mesmo mais importantes do que os sentidos físicos do homem.
É uma tragédia quando as pessoas perdem qualquer um dos sentidos naturais. Isso representa uma grande perda; temos uma vida imperfeita, cheia de limitações. Mas isso é igualmente verdadeiro para o homem interior. Não ter visão espiritual é uma perda trágica e uma limitação terrível; ser carente de audição espiritual, aquela capacidade de responder ao chamado do Espírito: "quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz”; não ter capacidade para ouvir é um situação é desesperadora. E quanta perda decorre da falta de percepção - na matéria do olfato, que é o sentido que permite que tenhamos percepção imediata das coisas. Sei como isso tem sido usado erroneamente, na tentativa eterna da busca por heresias, falhas e erros, mas existe uma faculdade correta de olfato espiritual que é muito importante. Creio que temos essa a referência a respeito de nosso Senhor: "o seu aroma estará no temor do Senhor" (Is. 11:3 - tradução da versão utilizada pelo autor - R.V.M) - que era a sua rapidez em perceber o perfume, capacidade de cheirar a vontade do Senhor. E como isso foi verdadeiro em Sua vida celestial: o que O salvava quando farejava o inimigo e o que ele estava tramando, além de farejar a vontade do Pai. É importante ter um bom olfato. O mesmo acontece com o nosso paladar e o nosso tato - aquilo que percebemos por meio do contato.
O homem interior é muito real, e seus sentidos formam a base da nossa capacidade espiritual: eles devem ser exercitados, precisam ser 'submetidas a isso' para aumento e desenvolvimento. Em Hebreus 12 o apóstolo discorria a a respeito de nossa filiação, então, no versículo 9, ele adota a expressão "o Pai dos espíritos" (vs 9 - tradução R.V.). ‘Nossos pais segundo a carne cuidaram para que nossos sentidos físicos fossem desenvolvidos adequadamente, para que aprendêssemos a saber o que é certo e errado no âmbito natural; eles nos ensinaram o que era verdadeiro e o que era falso'. Agora, temos o Pai de nosso espírito, e Sua preocupação é desenvolver nossas faculdades e sentidos espirituais. Ele está se concentrando no desenvolvimento da capacidade de visão espiritual, audição espiritual, sensação espiritual, paladar e toque. Ter esses sentidos desenvolvidos representa um homem maduro.
Então chegamos ao exercício propriamente dito. Qual é a natureza desse exercício - se preferir, dessa ginástica? - pois o Senhor 'nos conduz a esse processo’! Alguns de nós pode nunca ter feito ginástica. Lembro-me da primeira vez que entrei em um ginásio quando era jovem, e fui colocado diante de um cavalo com alças [aparelho de ginástica] e me disseram que deveria saltar. Nunca tinha tentado aquilo antes e fiquei assustado, mas precisei superar, não fui liberado enquanto não cumpri minha tarefa. Não adiantava correr em volta daquele cavalo, nem passar por baixo dele, precisei seguir em frente até ser capaz de saltar. E isso acontecia em qualquer parte daquele ginásio. Foi uma experiência terrível por um tempo, mas minha capacidade aumentou com o exercício. Esta palavra "correção" usada no texto de Hebreus significa isso. Temos a ideia de que corrigir significa bater. Não, corrigir representa o treinamento da criança, relaciona-se com a disciplina, o exercício. Estamos sendo submetidos a isso para que os sentidos sejam desenvolvidos e a capacidade seja aumentada.
O ponto é que não haverá desenvolvimento, a menos que encaremos algo além de nossa capacidade. Essa é uma verdade em todas as esferas. Isso significa que o Senhor estará constantemente nos colocando em situações desafiadoras. Se a questão é ver, e não conseguimos ver, o que vamos fazer - quando simplesmente não conseguirmos ver o que o Senhor quer dizer, o que Ele busca e o que está fazendo? Vamos desistir? Vamos dizer: 'Não consigo ver' e ponto final. Vamos para casa? Claro que não! Estamos passando por isso para que essa capacidade seja desenvolvida e a capacidade seja aumentada. Será que já não provamos isso em nossas experiências difíceis? Apesar de não conseguirmos ver ou compreender, pelo menos aprendemos algo sobre os caminhos e a mente do Senhor. Em todo o tipo de situação seremos colocados em posições que estão além de nossa capacidade. Isso te conforta? Você está fora da sua zona de conforto hoje? Está passando por situações que simplesmente não consegue enfrentar? A explicação para tudo isso está em Hebreus 12.
Existe um alto preço atrelado à capacidade - pelo menos isso é o que eu descobri. Temos nos desesperado por algumas pessoas e nos perguntamos se realmente podem ver, se vão crescer. Elas pareciam ter ficado por tanto tempo exatamente no mesmo lugar e na mesma medida, e nós nos desesperamos com sua situação. Então o Senhor as conduz às profundezas, quebrando, estilhaçando e esvaziando; e antes que imaginassem, as coisas mudaram interiormente. Aquelas pessoas adquiriram um novo conhecimento do Senhor; saíram daquela situação com algo que desejamos desesperadamente que elas alcançassem. Agora é possível que essas pessoas façam diferença, elas veem.
Não creio que exista outra maneira de incrementar nossa capacidade. A capacidade é algo de grande valor, tem um alto preço. É melhor encarar isso: cada pequeno aumento vai representar agonia. Mas há um grande “depois” em vista. "Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria" - e não espere que seja diferente - mas depois, e talvez, em certa medida, no depois daqui, poderemos ter um maior valor para o Senhor, na medida que passamos por Sua escola.
No entanto, como disse no início, esse o processo continua até o fim. E depois? Bem, poderemos deixar alguma coisa para o benefício de outros, mas certamente esse não é o fim. Não! Haverá o grande “depois”. Você percebe que esta carta coloca muita ênfase em prosseguir, continuar até o fim. Uma coisa que aprendemos na escola do Senhor é que nunca devemos limitar a Deus: não devemos aceitar um fim até que Ele diga que é o fim. Deixe-me dizer isso de outra forma. Quantas vezes chegamos a um depois, quando acreditamos que ele não aconteceria. Pensamos que tudo estava acabado e, em seguida, vem um depois, e nos censuramos por ter desistido tão rápido, antes do que deveríamos. Desistimos em nossos espíritos, paramos de correr com paciência. Então, passamos por um período sombrio, cheio de trevas, quando parecia ter chegado ao fim e nada mais restava, e o inimigo tentou nos fazer aceitar isso. 'Este é o fim terrível de tudo'. Descobrimos como Abraão experimentou horror e grandes trevas, e quando tudo parecia ter chegado ao fim, viu que aquele era apenas o começo de algo mais do Senhor - algo muito maior - um novo início. Assim, perseveramos, percebendo que esse caminho penoso é apenas uma preparação para a obtenção valores superiores, embora a situação no presente “não pareça ser motivo de alegria, mas de tristeza".
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